A Festa

Tudo parecia perfeito naquela noite. Os ventos frescos deslocavam do ar o calor que fizera no dia, permitindo assim que as mulheres ousassem em seus vestidos, o que eu aguardava ansioso. As flores desta época do ano, exalavam suave seus perfumes agraciando a lua exuberante no céu, esta que jazia em um escuro profundo dando em si ainda mais clara noção de infinito. A condução estacionou em frente as grades que cercavam a casa e já da entrada podia-se ver as luzes que inundavam o salão principal, e pelas janelas o vulto dos que se faziam presentes. Dentro da sala o de sempre, a mesa repleta de comida, ornamentada com variado cardápio. Os criados desfilando bandejas entre os convivas, carregadas de vinhos, uísques e champanhes numa completa mostra da extravagância humana.

Os homens confabulavam à espera de Alice, que desceria aquelas escadas, belíssima como em todos os anos. As mulheres que os acompanhavam a cada festa, se trajavam dos melhores vestidos, maquilagens e perfumes caros, tentando sempre chamar para si a atenção. O melhor prato a ser servido. E bem assim eu as via, correndo contra o tempo implacável, que a cada ano lhes envelhecia, por mais que não aceitassem ou que relutassem. Mas Alice não, estava sempre bela, cada vez mais bela. Suas curvas atenuavam-se a cada fim de ano e em todos, me trazia ali.Era o ano de1979, nos últimos vinte que me lembro; é provável que já dantes vinha na minha tenra infância; freqüento as comemorações do ano bom nesta casa. Meus pais que sempre viveram na vizinhança, eram grandes amigos da família e mesmo com toda minha insatisfação, obrigavam-me a freqüenta-la.                    

Depois da morte de meus pais, já há cinco anos, após a perda de seus bens e posses, fui inquirido por madame Lindbergh a representa-los.Não é preciso muito para reconhecer minha insatisfação dentre todos estes cavalheiros e damas e senhoras de grandes posses, vomitando-as sutil e cinicamente, uns nos outros em uma competição estúpida que se repete ano após ano. Por mais que já não me fosse obrigado a vir, considerando a não dependência deste convívio e minha total ignorância sobre a inquisição proposta, resignava-me a faze-lo pelo insaciável desejo de rever Alice. Nos anos de nossa infância brincávamos neste quintal. Crescíamos juntos e também como nós, crescia em mim, no recôncavo de min’alma, um amor que eu já sabia, como hoje inda sei, inacessível.                 Adentrando-me ao salão começaram, como já era por mim esperado, o rito dos comprimentos do qual eu tentava inutilmente escapar. As mesmas perguntas e comentários de sempre:

    como vai?

  Como vão os negócios?

   Você cresceu rapaz; já é um homem.

Todos sabiam que meus pais haviam me deixado apenas contas e dívidas, que os negócios iam mal como já iam a muito.  A maioria destes homens mantinham transações conosco e justamente pela ganância e egoísmo deles viemos a falir. Mas ainda assim interessavam-se em sabe-lo para simplesmente terem do que falar. Alguns chegavam até a me oferecer seus préstimos o que eu inocentemente já aceitei e é claro, o máximo que recebi foram as promessas perante o homens, para mostrarem-se caridosos e capazes, massageando seus egos e aumentando suas estimas entre si.   Safando-me dos comprimentos ou pelo menos destes desagradáveis me pus a vagar no salão observando as damas e seus decotes para de alguma forma fazer valer o desconforto de aguardar naquele meio a chegada de Alice. Sem sucesso tento me desligar desta maneira, mas o burburinho das conversas ao redor me deprime. As mulheres em seus angustiantes debates sobre aquisição de uma nova criada, ou das jóias recebidas como presente de casamento que brilhavam mais em suas bocas que nos seus corpos, me remetia a futilidade de suas vidas, principalmente quando se sabia que seus maridos passavam noites inteiras com meretrizes nos quartos de encontro, estas que para mim e também pra eles no auge de sua juventude recebiam muito mais que isto. Via-se no olhar de cada uma a indireta falsidade de ouvinte, que aguardavam apenas o virar das costas para comentarem desdenhosamente boatos como estes. N’outro canto da sala alguns homens falidos que se portavam ainda como nobres fidalgos para de forma alguma denotar sua pobreza, discursavam inventando estórias que não viveram, ruminando o que não tinham.Os criados que para mim possuíam dentre todos a melhor postura, eram desprezados. Não poderiam de forma alguma receber se quer um obrigado pelo esforço de servi-los. Para eles não havia festa nem passagem de ano. Todos os dias eram iguais. Os incansáveis trabalhos da casa, pagos com miseráveis salários e no fim dos anos o ainda maior trabalho de suportar toda essa gente mesquinha e falsa. Eram medidos por sua cor, sua humanidade estava ligada aos seus bens. Sendo assim, éramos todos serviçais ali, todos medidos pela pequinês de suas fortunas, das sua jóias e estórias, de tudo que em uma noite era possível falar, exibir, aumentar e mentir. Servindo então uns aos outros, como marionetes neste imenso teatro aristocrático e medonho.Enquanto eu terminava a dose última do copo que estava em minhas mãos, pensando em tudo isso e fazendo crescer meu ódio por aquelas pessoas, deu-se a hora em que em fim, desceria do seu quarto para juntar-se aos outros, Alice. O silêncio dos homens ao vê-la, fez pairar na atmosfera do salão uma densa nuvem de pensamentos que só se dissipava quando as mulheres sussurravam aos cantos, frases pejorativas sobre seu vestido ou a ousadia de seu decote. Eu no entanto me perdia em cada curva sua apresentada, sem grande espanto por já sabe-las de cor, mas, ansioso por tê-la em minha frente a cumprimentar-me. Tocar-lhe as mãos, o mais próximo que eu chegaria dela naquela noite. Por isso talvez me pareciam melhores as noite em que passava distante, tendo-a em meus sonhos por completo. A realidade da sua presença rodeada por toda essa pompa só me remetia a distância que existia entre nós.Ela não veio. Mais um ano passaria em que os agrados sufocariam-na e eu por exacerbada timidez, deixaria de romper a grossa camada dos que a cercavam. Caminhei para a sacada aguardando silenciosamente o jantar que como de costume encerraria a noite, e por certo o meu tormento.

Sentamo-nos na mesa então, dispostos como em todos os anos; na cabeceira madame Lindbergh e sua filha ao seu lado direito, seguida pelas famílias mais nobres e tradicionais até chegar a mim, que completava como último membro, a hierarquia do jantar. Os criados começaram a nos servir, também respeitando esta ordem, e enquanto comíamos eu podia observar a cada um de maneira ainda mais minuciosa. Divaguei por cada face enquanto mastigavam como porcos o farelo posto. Escorrendo no canto dos lábios a gordura das carnes atenuando a diplomacia fria com o passar sutil dos guardanapos. Meu estomago se revirava ao ver o valor dado ao banquete, imaginando os pensamentos contrários a cada comentário delicado sobre os sabores, a cada sorriso falso em resposta recíproca. Me via devorando os restos na cozinhas com os criados ao final da noite, e me veria mais feliz se assim fosse. Observei Alice em silêncio quase a não tocar no prato. Imaginei no seu olhar tamanho desgosto como o meu. Talvez não me salvasse, mas tinha de salva-la daquilo. Tinha de retirar deste covil, a única coisa que ainda valia, que confessava-me o seu rosto, ainda não tinha se contaminado. Senti o suor descer-me as têmporas. Voltei meu olhar para Alice, como se no dela encontrasse respostas para tamanha angústia. Vinham em minha mente as imagens de criança, as brincadeiras no jardim, os sonhos sustentados pela delicadeza de seu corpo, e de repente a perscrutar de novo as faces da mesa, outra vez  e mais forte me inundava o desejo de livra-la. Agarrei a faca afiada com a qual se partia as carnes, lancei-me sobre a mesa, todos continuavam quietos, apreciando falsamente a comida. E enquanto tropeçava os pés entre as tigelas atirei-me sobre um por um, degolando cada garganta, que sorria como lhes fosse alívio a morte, como se eu os salvasse de si mesmos, o que me deu ainda mais força para faze-lo em todos. Todos mortos e todos salvos inclusive Alice que sorria agora, sorria como nunca, enquanto o homem ao seu lado a beijava na face comemorando o ano novo que virava agora, despertando-me do meu sonho entre os esbarroes e abraços que eu recebia com a faca nas mãos.

Published in: on julho 17, 2007 at 3:10 am  Comments (4)